Vaiado na festa de 32 anos do PT, Kassab é visto por Lula como 'Zé Alencar do Haddad'
Na fase final do tratamento contra o câncer na laringe, Lula cultiva duas ideias fixas: deixar em forma suas cordas vocais e estruturar o palanque de Fernando Haddad, seu candidato à prefeitura de São Paulo.
Cuida da primeira obsessão com o auxílio de uma fonoaudióloga. Ela tenta tranquilizá-lo. Diz que sua recuperação é “surpreendente”. Assegura-lhe que terá a voz de volta, plenamente restaurada, até abril.
Para resolver à segunda inquietação, Lula socorre-se de sua intuição política. Ela lhe informa que o reforço da musculatura eleitoral de Haddad passa pelo fechamento de um acordo com Gilberto Kassab.
Pela lei, as coligações partidárias devem ser fechadas em junho. Lula não cogita esperar tanto tempo. Decidiu atalhar o calendário e as resistências internas do PT. Quer selar o acordo com Kassab ainda neste mês de fevereiro.
Há dois dias, Lula mandou dizer ao presidente do PSD, atual prefeito de São Paulo, que deseja reencontrá-lo. Kassab respondeu que também não almeja outra coisa. Evitará viajar no Carnaval. Chamado, atenderá prontamente ao convite.
Na quinta-feira (9), Lula intercalou uma consulta com a fonoaudióloga com uma conversa política. Recebeu um dos raros petistas que, como ele, enxerga em Kassab não um aliado tóxico, mas uma alavanca eleitoral.
No curso do diálogo, Lula declarou: “O Kassab é o Zé Alencar do Haddad”. A analogia como que resume suas conjecturas. Acha que Kassab está para o Haddad de 2012 assim como José Alencar estava para o Lula de 2002.
Ao esmiuçou o raciocínio, Lula disse que, para vencer em São Paulo, Haddad tem de “quebrar o preconceito” que afugenta o pedaço conservador do eleitorado paulistano das candidaturas do PT. A mesma aversão que o fez amargar três derrotas presidenciais.
Convertido em vice, o empresário Alencar forneceu o contraponto moderado que ajudou a pavimentar o caminho que levou ao Planalto o operário mal visto pela plutocracia e refugado pelo voto de “direita”.
Aliado do tucano José Serra, egresso do ultraconservador DEM, Kassab ajudaria Haddad a saltar do cercadinho que, na capital paulista, mantém os candidatos do PT nas cercanias dos 30%. “O Kassab vai trazer os 20% que faltam”, diz Lula, num flerte com o exagero.
Escorado nesse percentual, o cabeça do considera todo o resto secundário. Inclusive a incoerência de uma aliança com o prefeito a cuja gestão o PT se opõe há arrastados sete anos.
Nesta sexta (10), empurrado pela percepção de um acordo iminente, Kassab voou até Brasília. Foi à festa de aniversário dos 32 anos do PT. O anúncio de sua presença provocou vaias instantâneas.
Kassab deu de ombros. Com a imagem aplificada num telão ao fundo do auditório, o ex-adversário ergueu o braço direito. Acenou para a plateia de militantes hostis. Depois, sentou-se numa das cadeiras reservadas aos mandachuvas de partidos “aliados”.
Na conversa que programou para “antes do final do mês”, Lula quer detalhar com Kassab os meandros de um acordo que já trata como favas contadas. Deseja enganchar 2014 em 2012.
Lula enxerga a eleição municipal como um degrau para a sucessão estadual, outra de suas obsessões. Quer porque quer interromper a hegemonia do PSDB no maior e mais rico Estado da federação, sob controle do tucanato há 16 anos.
Esboça o apoio de Kassab a um candidato do PT ao Palácio dos Bandeirantes, contra o projeto reeleitoral de Geraldo Alckmin. Algo que, em privado, o chefão do PSD declara-se disposto a prover.
Para 2012, Lula se dispõe a acomodar na vaga de vice de Haddad um nome do PSD. Gostaria que fosse Henrique Meirelles, ex-presidente do BC. Mas não se opõe a Alexandre Schneider, o preferido de Kassab.
Para 2014, Lula oferecerá a Kassab três alternativas: a vice numa chapa petista, uma candidatura ao Senado (que acha mais provável) ou “outra coisa”. Quem o escuta entende por “outra coisa” um ministério no governo de uma Dilma reeleita.
O utilitarismo de Lula arrepia o PT. A senadora Marta Suplicy absteve-se de dividir com Kassab o palco dos festejos dos 32 anos anos do partido. Trocou a presença física por uma nota. No texto, lido no encontro, ela elogia as gestões de Lula e Dilma. Depois, fala de “bandeiras históricas” e de “princípios”.
“É fundamental seguir avançando nas conquistas sociais, sem abrir mão de nossos princípios”, escreveu Marta. A mesma senadora que, dois dias antes, justificara o distanciamento em relação a Haddad com temor de “acordar de mãos dadas com Kassab no palanque.”
Kassab foi o sujeito oculto também de um pedaço do discurso de Rui Falcão, o presidente do PT federal. “Hoje, temos uma política de acolhimento e nenhuma recusa de sermos acolhidos quando o projeto é comum e a causa é justa”, disse Falcão.
“Mas se é esse o nosso sentimento, é preciso também, ao relembrar os 32 anos do PT, o nosso manifesto de fundação e essa trajetória de luta e coerência, nós não nos deixarmos levar pelo pragmatismo exagerado”, ele acrescentou.
Tendo Kassab como ouvinte, Falcão recordou “um seminário recente” ocorrido no Chile. Um encontro que reuniu “partidos progressistas de toda a América Latina”. Discutiram-se, segundo ele, as causas do desencanto que afasta as pessoas da política e dos partidos.
Mencionou três motivos que “mereceram o consenso” dos debatedores. “O primeiro é que o eleitorado se afasta justamente pelo excesso de pragmatismo.” Kassab aguçou os tímpanos. “O segundo, diziam lá no Chile, são as mudanças bruscas de posição sem coerência programática.” Kassab arregalou os olhos.
“E o terceiro: ofertar nas eleições municipais um menu, um cardápio de políticas públicas descosidas e sem sinergia com o projeto nacional. Nós devemos levar isso em conta em todas as disputas.” Kassab apertou os olhos.
Alheio aos “princípios” de Marta e ao antipragmarismo de Falcão, Lula move-se como se enxergasse em Kassab um meio incontornável de facilitar a chegada de Haddad ao fim desejável. Faz ouvidos moucos para todo o resto. Aliança, diz ele, serve justamente para aproximar “desiguais”.